30.1.10

Porra, mais um dia desperdiçado!

Foi no momento em que parou de teclar
que,
subitamente,
percebeu que o manto azul escuro da noite embrulhava toda a casa.

Estranhou,
uma vez que, não há muito tempo se havia levantado,
(hoje vou levantar-me cedo), pensara, (é melhor não adiar mais tudo aquilo que preciso de fazer),
e assim o fizera, apesar da temperatura não ser muito convidativa ao abandono aconchegante do edredon (de penas, para que conste, uma fantástica oferta de natal do seu filho e avó, dele a avó, há alguns anos atrás, condoídos com o seu sofrimento nocturno, povoado de sonos e sonhos intermitentes e de pesados cobertores, divertidíssimos a impedir-lhe os movimentos, mas com uma enorme preguiça de desempenhar as funções que lhes haviam sido destinadas, ou seja, impedir a fuga do calor corpóreo),mas isso já lá vai, o frio, é claro, pois o edredon ficou (longa vida para ele).
Os dedos no interruptor
e eis que a lâmpada se espreguiça e a sua luz vai ganhando força, à medida que vai despertando (aposto que ficou chateada, também devia querer dormir mais um bocadinho),
porque a luz diurna, que lá fora pressentia intensa (está sol, pensou),
só com alguma timidez conseguia fazer penetrar o seus finos cabelos pelos quadrados da persiana semicorrida.

(tem que ser, vá lá...)
e lá estavam os dois pés fora da cama, tacteando aflitos à procura do aconchego dos chinelos
(porque não os deixará sempre no mesmo sítio?), insurgem-se.
Segundos depois, é o edredon que reclama o encontrão sofrido (hei, não é preciso empurrar!), e os braços que se arrepiam com a frigidez do quarto (porque não ficará aqui sossegada?)
Tem que ser, responde-lhes,
desculpem, não queria...
...mas tem que ser.

Depois, o mesmo ritual de sempre:
O roupão vermelho e gasto,
mas ainda assim cumprindo cabalmente as funções que foram destinadas,
além do mais, é bom poder reencontrar todos as manhãs um velho conhecido,
(é verdade que estás velho, mas tão depressa não vou encontrar alguém que conheça o meu corpo tão bem como tu, por isso, anima-te, não irei separar-me de ti só por isso, continuaremos juntos...)
(Até que a morte nos separe?), interroga.
(Eh, pá, tanto não direi!), grita sussurradamente (espero durar muito mais tempo que um pedaço de tecido polar vermelho, não queiras comparar, afinal de contas, apesar de amigos, não és mais do que uma peça de roupa criada pelo homem, ao passo que eu, sou uma criação divina!)

Ri-se, há muito tempo que sabe da mentira
(Deus não existe! nem os outros! Talvez fosse um deus interessante de adorar, se os deuses existissem. Só porque é quente... e amarelo),
mas agora pára um pouco,
de pensar é claro,
porque se apercebe que não tem a certeza de saber qual a cor de , terá a cor do sol?
(além disso, a luz do sol não é amarela, mas sim branca, segundo a teoria aditiva e, todas as cores que existem à nossa volta mais não são que a reflexão de um determinado comprimento de onda existente nos seus raios, de acordo com as propriedades químicas dos objectos em que se projectam, enquanto as restantes são por ele absorvidas, talvez seja branco, ou, talvez não, já que, sendo divino, talvez possa escolher a cor do espectro que vai usar em cada dia e assim variar o guarda roupa, sim, porque os deuses também se cansam de vestir sempre a mesma cor e, além disso, têm que ser belos, caso contrário, quem os adoraria?)

Depois,
uma rápida passagem pela casa-de-banho,
inevitável!,
dois passos
(bem, talvez sejam cinco, ou seis...)
a cozinha,

três passos,
o frigorífico,
porta aberta,
braço esticado,
pacote de leite na mão,
porta fechada (é um crime ecológico desperdiçar energia).
Ui! e então a torneira da banheira que não pára de pingar, isso já não é crime, não?, insurge-se o frigorífico, contrafeito por se ver impedido de apanhar ar fresco.
(Tens razão, sou uma criminosa, mas não sei arranjá-la e nãaaaaaaaaaaaaaaaaaaa conheço nenhum canalizador!)

armário, ou terá sido escorredor?
copo,
trinta e três centílitros bem medidos (é para que saibam)
leite no copo
braço esticado
frasco do café
(porra, já não chega, agora vou ter que por a mistura com vinte por cento de café)...
Só!?, grita o leite alarmado, (...que trouxe por engano do supermercado.
É o que dá fazeres as compras à pressa e não leres os rótulos com atenção),

microondas,
dois minutos,
tling (já está),
colher,
duas voltas,
talvez sejam quatro
leite castanho, ou melhor, cor-de -café -com- leite,
(ora aí está, todas as outras cores do espectro foram absorvidas)

Um gole interminável, (que bom!)
dois goles,
e pronto,
agora já não estás em jejum, podes acender um cigarro
uma passa, duas passas, três passas,
espreitadela na janela da marquise para ver se não chove,
está sol,
(que chatice, vou ter que ir trabalhar)

regresso à cozinha,
ainda resta um pouco de leite
e de cigarro,

devias comer, avisa a consciência,
(pois é, eu sei, mas não me apetece, qualquer dia)

cigarro esmagado no cinzeiro,
últimas gotas de leite (talvez não seja assim tão grave não comer, afinal de contas o leite é um alimento completo, caso contrário como sobreviveriam e cresceriam os bebés?),
mais um cigarro,
(muitas as horas de abstinência nocturna)

três passos,
sala,
computador,
botão,
aguardar (está cada vez mais lento!),
ligado (finalmente!)

ambiente de trabalho,
dois cliques no atalho desejado,
documento aberto,
(porra, como é que vou conseguir fazer esta treta?)

teclas,
dedos,
mais documentos abertos,
teclas,
dedos,
copiar,
colar,
arranjar,
(o aspecto também conta!)

cor,
sombreado,
sublinhado,
negrito,

formatar grelha,

imagem,
formatar imagem,

cor,
luminosidade,
contraste,

mais uma coisa de que te esqueceste,

verificar tudo de novo,
(não está mal de todo)
mas ainda faltam umas coisinhas...
(eu sei, faço depois, agora não aguento mais!)

ficheiro
guardar documento
escolha da pasta
Guardaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaado!

(Já está, acabei!!!!!).

Procuras a lista das tarefas para fazer este fim-de-semana
(É fim-de-semana, quem diria!)
Riscas o item correspondente (que bom, menos uma coisa...)
Olhas para a janela
e é aí que,
subitamente,
percebes que o manto azul escuro da noite embrulha toda a casa.

Estranhas
uma vez que não há muito tempo te encontras levantada.
(porra, mais um dia desperdiçado!)

tina

1 comentário:

Otodectes cynotis disse...

uau!

Não estava à espera disto...

Simplesmente genial