22.7.09

Narciso


Ultimamente, sempre que se olhava ao espelho, tinha a sensação que a imagem devolvida se ia tornando mais nítida e apurada, facto que fazia aumentar o prazer experimentado aquando da contemplação e que, consequentemente, fazia com que cada vez com mais frequência olhasse para si.
Talvez devido ao prazer incomensurável que lhe percorria o corpo sempre que se observava e que era agora gradativamente mais intenso, sentia-se mais leve, de tal forma que pela manhã, ao acordar, nenhuma marca da sua nocturna presença se assinalava nos lençóis.
Reparou mais tarde, quando passeava no jardim, que apesar de àquela hora o sol costumar divertir-se pintando sombras longilíneas no relvado, nesse dia se havia esquecido da sua.
Estranhando a inusitada ocorrência, aproximou-se do lago, mas ao debruçar-se nas suas águas, apenas encontrou o reflexo do salgueiro-chorão, ondulando em alegres brincadeiras com o cisne negro e os peixes doirados.
Debruçou-se um pouco mais, mas tudo continuou igual.
Aconteceu qualquer coisa com os meus olhos, cogitou.
Começava a sentir-se um pouco febril, pelo que resolveu ir para casa, talvez descansando um pouco, tudo voltasse ao normal.
Nas escadas, cruzou-se com a vizinha do rés-do-chão, que cumprimentou com o aceno de cabeça habitual, mas não obteve resposta.
Dir-se-ia que não me viu, pensou, enquanto metia a mão no bolso da calças para procurar a chave. Notou, ao esticar o braço para introduzi-la na fechadura, que não conseguia distingui-lo, parecendo-lhe que a chave, suspensa no ar, rodava sozinha.
Entrou em casa, sentindo a cabeça a latejar, devo estar doente, disse para si próprio, e dirigiu-se à casa-de-banho à procura de uma aspirina.
Assustou-se realmente quando, ao chegar junto do armário, este se recusou a devolver-lhe a usual imagem da janela da parede fronteira consigo ao meio.
Tomou o comprimido e decidiu ir deitar-se à espera que fizesse efeito e foi ao chegar ao quarto e ao reencontrar o seu sorriso matinal reflectido no espelho que tomou consciência que havia ficado preso.


tina

1 comentário:

Saramag.arte disse...

Estópida.Diria mais:continuo a amar-te...;)